terça-feira, abril 28

Diário do fim - dia 1

É como se tudo estivesse a acabar, os rios secaram, o céu virou negro, a agua da chuva virou sangue de dor, as arvores perderam a cor, a vida começou a desaparecer. A alegria virou tristeza, as gargalhadas foram abafadas por choro intenso e cheio de desespero, o cantar intenso dos pássaros foi abafado pelos trovões para além ruínas da civilização, o sol abandonou-nos, o frio corta o nosso interior como agulhas geladas. A comida sabe a pó, a agua sabe a ar e por mais que tente não consigo respirar.
Não consigo saber se estou bem ou em extrema agonia, não dá para distinguir, dava a vida só por um segundo de ontem, antes de tudo ter mudado, antes de tudo se virar de pernas para o ar. E assim um Império que demorou tanto tempo a se erguer precisou de um estalar de dedos para se fazer esquecer.
Pontual e rotineiro como sempre, entrei no café às dez e meia e pontual e rotineira como sempre lá estava ela, sentada na mesa do canto, ao lado do grande espelho que reflecte todo o café, a beber o seu chá de cidreira e a comer uma torrada barrada com manteiga só de um lado. Sempre com um romance debaixo de olho, pois lembro-me de ela ser uma apaixonada por aquilo. Consigo ver um dos seus olhos azuis por debaixo do seu manto de fios dourados, o seu sorriso ilumina todo o café e, com galopar das páginas notasse a sua tristeza fluir; talvez seja daqueles romances tristes em que um dos dois apaixonados morre, deixando o outro sozinho e sem rumo, o facto é que ela devora estas histórias que nem uma louca.
Sentei-me no outro canto do café, onde estou reflectido no espelho, a beber o meu café e a comer uma torrada cheia de manteiga - Tanta manteiga faz-lhe mal! - diz sempre o senhor Alberto ao entregar-me o prato - De olhos na menina de cabelos loiros outra vez? Se eu tivesse a sua idade e aparência não escapava - ao dizer isto com o seu sorriso matreiro quase me fez pensar em levantar e caminhar o café inteiro e sentar-me ao lado dela, depois pensei bem, será que valia mesmo a pena? Ela esta aqui todos os dias, oportunidades não irão faltar. Ai acorda! Como é possível estares apaixonado por alguém que nem conheces? O amor à primeira vista não existe!
Um mês depois ao entrar às dez e meia no café, já com os olhos na mesa do canto, aquela debaixo do espelho, noto que estava vazia, possivelmente apanhou transito a vinda para cá, ou talvez tenha tido um exame ou assim. O senhor Alberto já trazia o meu café e a torrada ensopada em manteiga por instinto, sabendo que não eu nunca iria pedir outra coisa, ao pousar o prato na mesa trocou as suas palavras diária por algo que me fez em pó - É uma pena menino, ela era uma boa rapariga, mas a morte toca a todos, ainda bem que não a chegou a conhecer, seria um pouco mau perder alguém amigo não concorda? - nem consegui olhar para a expressão dele ao dizer estas palavras, senti dentro de mim algo que queimava, não sabia explicar o que era, a chávena do café encheu-se de lágrimas em segundos, será que estaria mesmo apaixonado por ela?
-Menino, lembrei-me agora, tome este livro, a outra menina deixou-o a mim na ultima vez que cá veio, e fez questão que fosse entregue a si, um bonito romance se quer que lhe diga. Fitei a capa do livro, e li em letras gordas no topo algo que ainda acabou mais com a minha vida, "Amor à primeira vista."

sábado, abril 25

Tantos anos sem ouvir uma única alma viva, a porta abriu, aquela que eu pensei já não existir, de lá veio um doce som, já ouvi algo parecido, enterrado sobre os pilares da minha memória vive um som assim; sim, eu lembro-me de algo igual.
Ouço os seus passos a chegarem perto de mim, sinto o medo no ar, já não sentia o medo a tanto tempo, para além da dor não sentia nada à anos. Deixei de ouvir os passos, mas em troca ouvi uma voz que acordou em mim tudo o que estava adormecido.

-Os seus olhos?
-Estão nesta caixa, nunca mais precisei deles, pois se os tinha era para a ver a ela, se não a posso ver pouco me interessa o resto.
-As suas mãos?
-Uma está junto da mão dela, se foi algo que sempre quis foi poder sentir a sua mão tocar na minha para sempre, nunca a irei largar, até em pó a irei sentir. Guardei sim a mão direita, para poder escrever sobre ela como outrora fizemos, sentir a sua mão e escrever sobre tudo o que o seu toque me fazia sentir.
-As suas pernas?
Cortei-as, se alguma vez precisei delas foi para poder estar com ela, não faz mais sentido me mexer, pois prometi que nunca a iria visitar quando ela fosse embora.
-O seu peito? Como é possível viver assim?! Mas... não tem coração, esse enorme buraco vazio, não pode ser!
-Tanto é possível que o estas a ver, eu não vivo, já o fizera a muito tempo atrás. Decidi abdicar da vida quando alguém abdicou da sua sem poder escolher. Se aqui estou a falar contigo não é por opção, é por ser obrigado a viver toda a dor que um cobarde tem de sofrer por querer morrer para encontrar quem ama!

O silêncio invadiu a sala, infelizmente perdi a noção do tempo, não sei se passaram dias ou apenas segundos, mas aquele silêncio fazia mais confusão do que o que eu sempre tive em volta de mim. Senti uma brisa quente, mesmo não tendo os meus olhos vi uma luz no fundo da escuridão e ouvi as ultimas palavras da minha vida, lembro-me como se estivesse a ouvir outra vez:
-Desculpa! Se foi coisa que nunca quis foi deixar-te assim, se foi coisa que sempre quis foi voltar aqui, está na altura de vires comigo e seres o que eras antes, tantos anos depois encontrei-te e se há maior prova de amor que a tua, só mesmo o voltar a vida para te encontrar e levar-te comigo, de novo para a morte...
Gotas de sangue caem de olhos cegos, o rosto não sente este rio de dor a descer por si, a boca não sente o ácido sabor, a folha arde ao ser tocada pelo toque seco e sem alma das minhas lágrimas.
Sentado no vazio do meu quarto, acompanhado por uma cadeira, a minha secretária, uma folha e uma janela que aponta para a escuridão da noite, escrevo em linhas de sangue em que cada traço é parte de ti, o meu sangue é teu. O negro vermelho em que o texto se constrói faz-me lembrar o céu pingado com brilhos sem alma de lágrimas vazias de emoção, estrelas que brilham falsamente num céu escuro e cheio cheio de mentira.
Faço minhas as tuas palavras, pois agora não as tens. Faço do meu sangue a tua voz. Faço da minha vida os teus olhos. A escuridão abate-se no meu colo, toda a falsidade escrita no céu se apaga, e todo o ódio nesta folha se acende, as chamas correm todas as frases e parágrafos, terminam todas as perguntas, todas as afirmações, todas as pausas. Percebi em meio segundo de morte o que nunca entendi em tantos anos de vida.

quinta-feira, abril 23

2404

Deserto de memórias boas, negra floresta de más recordações é assim que me recordo da minha mente. A última vez que a visitei tornou-se na viagem mais sombria que poderia ter. Seu sangue espalhado pelo corredor da minha vida, procurei por todas as portas mas ela já lá não estava, nenhum quadro do passado tinha o seu olhar que me seguía constantemente; encontrei-me preso num canto escuro, sozinho, toda a luz era engolida por um negro manto em minha frente.
Corri para ele, mas quanto mais corria mais a luz se ia e menos a ela a via, perdi-me em mim mesmo, na minha mente, tentei sentir o que me fazia encontrar-te, mas acabei por sentir o que me fez te perder. Dói tanto!
Mais um sono perdido em que não te encontrei, remexo nas memórias, nos sentidos, mas cada vez mais me apercebo que tudo não passa de uma história que um dia eu criei, idealizei e me apaixonei...